Entenda os momentos de Jesus durante Sua Paixão
Veremos os últimos acontecimentos da vida de Jesus até a Sua ressurreição, a partir da teologia de Joseph Ratzinger (Papa emérito Bento XVI), considerando que se trata do mais significativo teólogo da atualidade. A partir da Última Ceia e da Instituição da Eucaristia, serão abordados alguns momentos essenciais da vida de Jesus, sem dispensar a questão efetiva da historicidade, mas com base na verdade de que a mensagem do Novo Testamento aconteceu, de fato, na história real deste mundo.
A Última Ceia
De acordo com a cronologia joanina, a Última Ceia aconteceu na tarde da quinta-feira, e não se trata de uma ceia pascal, como expressam os sinóticos. Ratzinger salienta que exegetas têm se debruçado sobre essa questão para conciliar as duas cronologias e demonstraram-se, com base nas fontes, mais favoráveis a João. O sentido teológico da Última Ceia de Jesus é enfatizado nestes termos:
“Um dado é evidente em toda a tradição: o essencial dessa Ceia de despedida não foi a Páscoa antiga, mas a novidade que Jesus realizou neste contexto. Mesmo que este banquete de Jesus com os doze não tenha sido uma ceia pascal, segundo as prescrições rituais do judaísmo, num olhar retrospectivo tornou-se, com a morte e a ressurreição de Jesus, evidente o significado intrínseco do todo: era a páscoa de Jesus. E, nesse sentido ele celebrou a páscoa e não celebrou. […] Mas Ele entregara-Se a Si mesmo, e assim tinha celebrado com eles verdadeiramente a Páscoa. Dessa forma o antigo não tinha sido negado, mas – e só assim o poderia ser – levado ao seu sentido pleno” (RATZINGER, 2016, p. 110).
Relativamente à interpretação dos conteúdos teológicos essenciais da tradição da Última Ceia, a partir das palavras diferentes de Marcos/Mateus e Paulo/Lucas, destacam-se duas direções próprias dessa oração, que é louvor e agradecimento pelo dom de Deus, sendo que esse louvor retorna em forma de benção sobre o dom. O partir o pão representa Deus Pai, que pela fecundidade da terra distribui o pão para todos, bem como o gesto da hospitalidade que acolhe a todos na comunhão do banquete. A frase pronunciada sobre o pão: “Isto é o meu Corpo” – Marcos/Mateus, “que é dado por vós” – Paulo/Lucas, institui o Sacramento “onde se torna o grão de trigo que morre; e onde, por meio dos tempos, Se distribui a Si mesmo aos homens na verdadeira multiplicação dos pães.” (RATZINGER, 2016, p. 124).
A frase pronunciada sobre o vinho: “Isto é o meu Sangue, o Sangue da Aliança” resume toda a história da salvação anterior, descritas no Ex.24,8; Jr, 31,31 e em Is 53,12, com a promessa do Servo que carrega os pecados de muitos, obtendo para eles a salvação. A repetição encontrada em Paulo/Lucas: “Fazei isto em memória de Mim”, trazem o caráter da instituição da prática litúrgica. Observa-se, portanto, que a Igreja não celebra na Missa a Última Ceia, e sim o que durante a Última Ceia o Senhor instituiu: o memorial de sua morte e ressurreição.
Concluído esse momento com a recitação dos salmos, Jesus se dirige com seus discípulos para o Monte das Oliveiras, a um lugar chamado Getsêmani. Ratzinger menciona o evangelista João que, ao se referir a esse lugar em que Jesus sofreu, morreu e ressuscitou, denomina-o como “jardim” (cf. Jo 18; 19,41), aludindo à narração do Paraíso e do pecado original, para afirmar que Jesus retomou a história no jardim, aceitou a vontade do Pai e inverteu a história.
A Paixão do Senhor
A oração que Jesus proferiu na sua profunda agonia: “Abba! Ó Pai! Tudo é possível para Ti: Afasta de mim este cálice; porém não o que Eu quero, mas, o que Tu queres” (Mc 14,36), possui um denso sentido teológico, visto que, na natureza humana de Jesus está a obstinação do homem e, com a sua luta, essa natureza recalcitrante é movida para a sua verdadeira essência. A oração “não se faça a Minha vontade mas a Tua” (Lc 22,42) é acentuada por Ratzinger com estas palavras:
“É verdadeiramente uma oração do Filho ao Pai, na qual a vontade humana natural foi totalmente arrastada para dentro do Eu do Filho cuja essência se exprime precisamente no ‘não Eu, mas Tu’, no abandono total do Eu ao Tu de Deus Pai. Mas este ‘Eu’ acolheu em si a oposição da humanidade e transformou-a, de tal modo que agora, na obediência do Filho, estamos presentes todos nós, somos todos arrastados para dentro da condição de filhos” (RATZINGER, 2016, p.150).
Essa significante oração termina quando Judas chega acompanhando com guardas enviados pelas autoridades do Templo e O prendem e, assim, inicia-se o Seu processo de condenação à morte. Ele, ao deparar-se com o sumo sacerdote, instância suprema do povo eleito, o sumo sacerdote dos bens futuros (cf. Hb 9,11), e ser interrogado se era o Filho de Deus, responde afirmativamente. Então, é entregue ao governador romano para a condenação.
Mediante à pergunta de Pilatos: “Então Tu és Rei?”, em que Jesus responde: “Tu o dizes: Sou Rei. Para isto nasci e vim ao mundo: para dar testemunho da verdade. Quem é da verdade ouve a Minha voz” (Jo 18,37), com isso Jesus introduz um conceito, tornando acessível o fundamento do poder de Sua realeza: a Verdade!
Entretanto, na pergunta de Pilatos, se vê em jogo o destino da humanidade: “Que é a verdade?” (Jo 18,38). Dessa forma, compreende-se que testemunhar a Verdade significa pôr em evidência Deus e Sua vontade diante dos interesses do mundo e de suas potências. Observa-se que, a redenção fundamenta-se no fato de que, a Verdade tornou-se reconhecível em Jesus Cristo que entrou no mundo e a instaurou no meio da história.
“Considera-se como elemento essencial destes últimos acontecimentos a morte de Jesus na cruz que, segundo os evangelistas, deu-se às três horas da tarde. Jesus foi verdadeiramente até o fim, realizou a totalidade do amor, deu-Se a Si mesmo. ‘Em lugar de todos os outros atos cultuais, entra a cruz de Jesus como a única verdadeira glorificação de Deus, na qual se glorifica a Si mesmo por meio d’Aquele em quem Ele nos dá o seu amor e, assim, nos atrai rumo às alturas para Si’” (RATZINGER, 2016, p. 202).
Entender o sentido dos últimos momentos de Jesus é entender o significado da nossa fé
Nesta hora em que são imolados os cordeiros pascais no Templo, é imolado Jesus, o verdadeiro Cordeiro que é puro e perfeito. As palavras de João Batista: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1,19), agora tornam-se realidade. Pois, Jesus, o Cordeiro de Deus, na cruz, carrega o pecado do mundo e o elimina. Na mesma hora em que o soldado em vez de quebrar as pernas, transpassa o lado de Jesus com a lança, os sacerdotes no Templo imolavam o Cordeiro Pascal, sem quebrar-Lhe nenhum osso, conforme estabelecido no livro do Êxodo 12. Neste sentido, João apresenta Cristo como o novo Cordeiro da nova Páscoa.
Os quatro evangelistas narram que um membro do Sinédrio, José de Arimateia, pediu a Pilatos o corpo de Jesus e o envolveu em panos de linhos com aromas – cerca de cem libras de mirra e aloés – (cf. Jo 19,39-40), dando a entender que, a forma como Ele é sepultado O manifesta como Rei.
É de suma importância penetrar na verdade mais profunda da cruz: a morte de Jesus como reconciliação (expiação) e salvação. Os primeiros cristãos perceberam primeiramente que, com a cruz de Cristo, os antigos sacrifícios estavam concluídos e o mundo obtivera expiação, ou seja, a relação de Deus com os homens fora renovada. Compreenderam que, na paixão de Jesus, a impureza do mundo entrou em contato com o imensamente Puro e, se a realidade impura por meio do contato contagiava e manchava a realidade pura, aqui acontece o contrário, o Puro revela-se mais forte. Ratzinger evidencia essa verdade da seguinte forma:
“Neste contato, a imundície do mundo é realmente absorvida, anulada, transformada por meio do sofrimento do amor infinito. Visto que no Homem Jesus está presente o bem infinito, agora, na história do mundo, está presente e ativa a força antagonista de toda a forma de mal; o bem é sempre infinitamente maior do que toda a massa do mal, por mais terrível que esta se apresente” (RATZINGER, 2016, p.209).
A Igreja, ao longo dos séculos, apreendeu cada vez mais o mistério da cruz, tendo em vista que esse não se deixa reduzir à categorias da razão humana. Na cruz, a obscuridade e a incoerência do pecado encontram-se com a santidade de Deus que, no Seu esplendor, ofusca os olhos e ultrapassa a lógica. Entretanto, na doutrina do Novo Testamento e na sua vivência por meio dos santos, esse profundo mistério é sempre fulgurante.
A fé no Cristo Ressuscitado
Nesta reflexão sobre a vida de Jesus, sobressai ,de maneira peculiar, a Sua ressurreição como ponto decisivo, tendo em conta as palavras do apóstolo Paulo: “Se Cristo não ressuscitou, então é vã a nossa pregação, é vã a nossa fé” (I Cor 15,14). Uma nova leitura da Sagrada Escritura teve início depois da ressurreição pelos primeiros cristãos – a cruz e a ressurreição foram compreendidas de um modo novo e, assim, chegou-se à fé em Jesus como Filho de Deus.
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A fé na ressurreição não contradiz a realidade na qual o homem está inserido, no entanto, evidencia uma realidade ulterior, para além do conhecimento racional humano. A ressurreição é um fato que ocorreu na história, porém, rompe o âmbito histórico ultrapassando-o. Ratzinger evidencia a questão da ressurreição como acontecimento histórico da seguinte forma:
“A essência da ressurreição está precisamente no fato de que ela rompe a história e inaugura uma nova dimensão que habitualmente chamamos dimensão escatológica. A ressurreição descerra o espaço novo que abre a história para além de si mesma e cria o definitivo. Neste sentido, é verdade que a ressurreição não é um acontecimento histórico do mesmo gênero que o nascimento ou a crucifixão de Jesus. É algo novo, um gênero novo de acontecimento” (RATZINGER, 2016, p. 245).
Em suma, compreende-se que o Homem Jesus, com o Seu corpo, passou a pertencer ao plano do Eterno, trazendo uma novidade que mudou a história: a partir d’Ele, o homem tem um lugar em Deus. Conclui-se que, a ressurreição de Jesus, fundamento da fé cristã, transcende a história, de modo que, deixa marcas testemunhadas como algo completamente novo e sublime. Com esse acontecimento, Jesus inaugura uma nova dimensão qualitativa para o ser homem, sendo que, apesar desse ter sido criado para a imortalidade, somente com a Sua ressurreição tal imortalidade recebe sentido com a comunhão com Deus, ou seja, com a humanidade reconciliada.
REFERÊNCIAS:
RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré: Da entrada em Jerusalém até a Ressurreição. Tradução de Bruno Bastos Lins. 2. ed. São Paulo: Planeta, 2016.
Áurea Maria,
Comunidade Canção Nova